__________________________________________________________________________________________ __________________________________________________________________________________________

Em cada um de nós existe um poema .
Um por escrever ... um escrito que se quer procurado e se mantêm escondido na alma ... no coração.

Ser poeta ... não é escrever poemas.

É saber descobrir na poesia ... a parte que falta em si, a parte que falta ... nos outros .

Urbano Gonçalo




sábado, 17 de julho de 2010

A arca de Noé

TERRA!
Nem planaltos, nem veigas, nem desertos.
Nem mesmo a maciez tranquilizadora dum monte. apenas a crista de um cerro a emergir das vagas. Mas bastava. Para quantos o viam, o pequeno penhasco resumia a grandeza do mundo.
Encarnava a própria realidade deles, até ali transfigurados em meros fantasmas flutuantes.Terra!
Uma minúscula ilha de solidez no meio dum abismo movediço, e nada mais importava e tinha sentido.
Terra! Desgraçadamente, a doçura do nome trazia em si um tremor. Terra ... sim, existia ainda o ventre quente da mãe. Mas o filho?
O legítimo fruto desse seio?
À medida que a barca se aproximava, foi-se clarificando na lonjura a sua presença esguia, recortada no horizonte, linha severa que limitava um corpo, e era ao mesmo tempo um perfil de vontade.
Chegara! Conseguira vencer! E todos sentiram na alma a paz da humilhação vingada.
Simplesmente, as águas cresciam sempre, e o pequeno outeiro, de segundo a segundo, ia diminuindo. Terra! Mas uma porção de tal modo exígua, que até os mais confiados a fixavam ansiosamente, como a defendê-la da voragem. A defendê-la e a defender Vicente, cuja sorte se ligara inteiramente ao telúrico destino.
Ah, mas estavam rotas as fontes do grande abismo e abertas as cataratas do céu!
E homens e animais começaram a desesperar diante daquele submergir irremediável do último reduto da existência activa. Não, ninguém podia lutar contra a determinação de Deus. Era impossível resistir ao ímpeto dos elementos, comandados pela sua implacável tirania.
Transida, a turba sem fé fitava o reduzido cume e o corvo pousado em cima. Palmo a palmo, o cabeço fora devorado. Restava dele apenas o topo, sobre o qual, negro, sereno, único representante do que a raiz plantada no seu justo meio, impávido, permanecia Vicente. Como um espectador impessoal, seguia a Arca que vinha subindo com a maré. Escolhera a liberdade, e aceitara desde esse momento todas as consequências da opção.
Olhava a barca, sim, mas para encarar de frente a degradação que recusara.
Noé e o resto dos animais assistiam mudos àquele duelo entre Vicente e Deus. E no espírito claro ou brumoso de cada um, este dilema, apenas: ou se salvava o pedestal que sustinha Vicente, e o Senhor preservava a  grandeza do instante genesíaco, a total autonomia da criatura em relação ao criador, ou submerso o ponto de apoio, morria Vicente, e o seu aniquilamento invalidava essa hora suprema.
A significação da vida ligara-se indissolùvelmente ao acto de insubordinação, natural ao homem.

Do grande, Miguel Torga.

2 comentários:

Regina Rozenbaum disse...

Olá, Urbano!
Recebi seu convite e aqui estou a conhecê-lo. Fico muito feliz que tenhas gostado e se identificado com alguns posts do meu/nosso Divã.
Já estou aqui a seguí-lo e espero que possamos fazer, juntos, para além do Atlântico uma grande amizade!
Beijuuss n.c.

www.toforatodentro.blogspot.com

Urbano Gonçalo de Oliveira disse...

Faremos uma dupla imbatível concerteza.
Obrigado, fica bem.

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...