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Em cada um de nós existe um poema .
Um por escrever ... um escrito que se quer procurado e se mantêm escondido na alma ... no coração.

Ser poeta ... não é escrever poemas.

É saber descobrir na poesia ... a parte que falta em si, a parte que falta ... nos outros .

Urbano Gonçalo




segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Excerto do meu romance "Genéve" (11)


No dia seguinte a ter dado entrada no hospital devido à agressão de um assaltante que me deixou inconsciente e com amnésia, acordei com a claridade e a azáfama no quarto logo cedo. Sentia a cabeça latejar e um pouco tonto encostei-me para trás deixando os meus olhos fechar por um instante. Ao abrir de novo os olhos vi que tinham levado o meu companheiro da cama ao lado, companheiro esse que eu nunca vi por as cortinas da sua cama estarem constantemente fechadas. Apenas me lembro de quando chegou o ter vislumbrado e fiquei na altura com uma sensação de "dejávu", mas como mal me mantinha acordado acho ... não sei, se não estaria a sonhar, no entanto de vez em quando tenho essa sensação de volta.
Entretanto entrou na enfermaria um polícia com uma jovem na casa dos trinta possivelmente, que ao ver-me sorriu e correu a abraçar-me começando depois a chorar.
- João, meu Deus! Julgava que não te iria ver mais, nem imaginas a minha aflição.
Olhei-a fixamente sem falar, não conseguia perceber nada.
- Ele não a está a reconhecer, - disse um médico que entretanto chegava - ele está a recuperar de uma amnésia traumática devido à pancada que levou na cabeça, mas tirando isso está bem e deve recuperar totalmente a seu tempo.
- João, não te lembras da Natalie, "Nat" como gostavas de chamar para te meteres comigo?
- Não desculpe! - disse desanimado.
Entretanto o polícia confirmou a minha identidade, e até pelos vistos foi informado de que a minha carteira aparecera e tinha lá os meus documentos, só faltava claro o dinheiro. A jovem que estava lá comigo, prontificou-se de imediato para lá ir buscar a carteira.
- João! - dirigiu-se ela novamente a mim. - Já avisei a tua filha, e já tratei aqui no hospital da papelada toda!
- A minha filha?
- Sim! Ai meu Deus, custa-me tanto ver-te assim alheio! Ela ficou para morrer, aliás ficamos todos com o teu desaparecimento.
O médico voltou à enfermaria e chamou-a, saíram por momentos e eu sentia-me cada vez mais vazio, a aguardar por uma memória que tardava em regressar. Voltei-me então para o meu companheiro do lado, as auxiliares estavam a fazer a cama de novo e reparei que apagavam o seu nome da placa na testeira da cama, nome que não consegui ver.
- Como está esse senhor? - perguntei a uma delas.
- Já não "está", coitado, acabou por não resistir aos ferimentos. Morreu há pouco mais de meia hora.
- Disse ferimentos? Foi atropelado?
- Não, foi esfaqueado! Parece que se envolveu com um larápio qualquer por causa deste velho caderninho, está a ver? Devia ter muita estimação por ele!
Ela mostrou-me o tal caderninho e de repente senti um choque tão grande na minha cabeça que até fiquei sem ar. De súbito e em bruto a minha cabeça recebeu num enorme turbilhão tudo o que havia sido esquecido.
- Sente-se bem? Vou chamar o médico!
- Não! Espere por favor, deixe-me ver de novo o caderno.
A outra auxiliar deu-mo para a mão.
- Conhece-o?
- Sim, é meu! - disse tristemente.
- Seu? Como?
- Era o caderno da minha falecida esposa, ando sempre com ele!
- Mas então como foi parar às mãos de um mendigo, que ainda por cima ao que tudo indica, morreu por o tirar a um marginal?
- Ele não era um mendigo, muito pelo contrário.
- Então você conhecia-o?
- Sim, vejo agora que sim! Sei que era ou fora rico, e que um dia deixou tudo isso para trás. Conheci-o um dia quando passeava no parque ao fundo da minha rua, tinha lá uma encruzilhada de caminhos que acabaram por me levar a ele. Estive na altura à conversa um bom bocado com ele, e surpreendeu-me a sua inteligência e modo como via a vida. Sei que estava a fazer o caminho de Santiago de Compostela, tal como o santo ele queria fazê-lo só e sem nada a não ser a sua roupa do corpo.
As auxiliares olhavam uma para a outra, numa tentativa de perceberem se eu estaria a falar verdade.
- Acabei por ser o culpado da sua morte!
- Você deu entrada um dia antes dele, por isso não teve nada a ver com a sua morte.
- Tive, tive! Este caderno ... ele conhecia-o, e ao vê-lo deve ter pensado que se ele não estava comigo, então alguma coisa de muito grave me devia ter acontecido. Acabou por isso, por morrer ao querer que um bem que me era muito importante, não ficasse nas mãos de um qualquer, que não lhe daria valor nenhum.
- Há cada história nesta vida! De certeza que é este caderno?
- Tome! - disse-lhe eu - Procure uma página que tem uma ponta dobrada, está mais ou menos a meio!
Ela folheou cuidadosamente até encontrar a tal página, eu pensei um pouco e disse:
- Está aí escrito um poema, não é?
- É! - disse olhando a outra.
- Se a minha memória já está boa, o poema deve ser assim:
No olhar está o saber,
no coração a alma revolta.
No mar a incerteza o querer,
no céu uma imensa calma ... de volta.

O fogo apaga a história,
a chuva trás de volta a tristeza,
o sol apaga a memória ... que
nos mantêm a alegria presa.

Pude em tempos compreender,
que me tornara na presa,
de um mal que não quis ver ...
e os outros não querem ver com certeza.

- Um mal que não quis ver? - repetiu uma delas curiosa.
- Ela escreveu esse poema no dia em que soube ter um tumor cerebral inoperável, embora secretamente já suspeitasse disso há muito tempo.
- Lamento ... devia ser uma pessoa muito especial!
- Nem imagina!

2 comentários:

Regina Rozenbaum disse...

Urbano, amado!
Boooommm diiiaaa, amigo!!! UAU... quantas mudanças aqui no seu Delicado... Além da arte da escrita és também um pintor??? Que telas lindas! Você está me saindo uma verdadeira "caixinha de surpresas"... quantos prêmios literários... PA-RA-BÉNS!!!
Beijuuss n.c.

www.toforatodentro.blogspot.com

Luiza disse...

Te sigo e estou adorando...
Beijooo

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