Em miúdo, por vezes à noite quando me ia deitar, apanhava a minha mãe "bem disposta" e desafiava-a para jogar um pouco às cartas. Sabia que ela gostava disso, eu ... nem por isso ( ainda hoje, não ligo nada ao jogo! ).
Jogávamos sentados na beira da sua cama, ao "burro" e à "bisca", e claro eu só ganhava de vez em quando e quando ela deixava.
As minhas irmãs, diziam que eu lhe estava a dar "graxa", para depois lhe pedir qualquer coisa. A minha mãe, também assim pensava, mas eu nunca me importei com isso.
O que ninguém pensava, sabia ou sabe até hoje, é que o verdadeiro motivo do jogo eram os momentos que eu passava com ela a sós. Conversávamos, a minha mãe respondia às minhas perguntas ( mais ou menos! ), e eu às dela. A minha mãe nunca foi pessoa de muitos mimos, atenções, carinhos ou apreço. Não a critico por isso, não. Sei que ela teve de ser mãe e pai de quatro filhos, numa época de fome e de muitas privações. Um dos filhos, o último ( eu ), saiu da cartola de um certo mágico, que lhe apareceu, prometeu e ... desapareceu.
Tendo de base uma educação parca em amor mas fértil em fome e medo, cedo ela se viu "lançada" aos lobos desta vida. Sempre demonstrou espírito de luta, e nunca aceitou ser pior ou menos do que os outros. Lembro-me sempre, que apesar de não saber ler nem escrever, aprendeu a custo a fazer a sua assinatura, e sempre que legalmente esta era exigida, ela nunca optou por marcar o seu dedo no papel, antes pelo contrário, a custo e demoradamente copiava a sua assinatura do B.I.
Não, não a critico, apenas a admiro como ninguém.
Aqueles jogos de cartas, eram para mim uma maneira de conhecer melhor a minha mãe, à noite e cansada, ela baixava as defesas, sorria das minhas palermices, perguntava-me o que eu tinha feito durante o dia, o que gostava de ser ... ter, e contava-me para meu gáudio coisas de África, onde conhecera o meu pai, e onde eu fora concebido ( Moçambique ). Como era ele, onde viviam, quantos táxis tinha ( era taxista ), contava-me que se via o Zoológico do 1º andar da casa, do negrinho Josué, de quem tanto gostava e tinha saudades ( ele era muitas vezes a sua única companhia ). Das saudades que tinha dos meus irmãos, que fora obrigada a deixar em Portugal aos cuidados de uma irmã, para rumar ao ultramar e aí tentar ganhar a vida, para assim pagar as dívidas que uma viuvez prematura lhe deixara de legado.
Às vezes as conversas duravam, outras vezes uma qualquer frase ou má recordação voltava a fechá-la, e o jogo acabava ali mesmo. Alguns dias depois, dava-me algo que eu durante as conversas mencionara, e as minhas irmãs lá me chamavam "graxa" de novo. Foram apenas aqueles momentos ( poucos! ), que eu consegui do interior da minha mãe, mas nunca os esqueci. Dizia muitas vezes admirar alguns dos costumes africanos e a maneira de ser deles perante a vida.
- Eles choram quando nasce uma criança, e festejam uma morte!
Pediu a uma velha "curandeira" que me protegesse contra os males do mundo, e sabia de cor as rezas que ela fazia em "Chilande" o idioma usado naquelas aldeias.
Às vezes dizia-as sozinha, e um dia traduziu-me uma que era assim: - Pobre da mãe que chora um filho, pois é porque nunca verdadeiramente o encontrou. Pobre do filho que chora a mãe, pois é porque nunca verdadeiramente a encontrou!
Para ela isto tinha muito significado, e por essa senhora tinha uma grande adoração.
Para mim, não fazia sentido nenhum, mas ... nunca esqueci as tais palavras.
Minha mãe faleceu há pouco tempo, mesmo muito pouco.
Curiosamente nesse dia eu estava a tomar conta dela, e como antes também me sentara na beira da cama, não a jogar às cartas, mas ... a meter-me com ela para lhe tentar ver uma reacção ao seu já longo estado vegetativo. Sei por isso que ela levou de ultima imagem o seu "menino" a sorrir para si, e a brincar com ela.
Dei-lhe o almoço (de seringa) e ao voltar da cozinha para lhe dar um pouco de água ... ela já tinha partido.
Ensinou-me muito ... à sua maneira.
Só vergou a vários AVC'S, após quase três anos de luta.
Dizia que devemos andar na rua de cabeça levantada respeitando os outros, que devemos ser nós mesmos e não aquilo que os outros querem que sejamos.
- Respeita quem te respeita e aos teus, agradece sempre em dobro, os teus amigos, não são os que andam sempre em tua casa, são os que lá aparecem quando precisas deles, podes sempre perder ... mas nunca o faças sem dar luta.
Não te bati palmas mãe, mas tu merecias.
Mantive este tempo todo no coração estas pequenas grandes coisas que me ensinaste, e descobri finalmente o significado das palavras que tanto admiravas.
Não te chorei ... não para o mundo, para os outros.
Deus sabe o quanto batia o meu coração no peito, quantas vezes as minhas pernas fraquejaram bambas.
Deus sabe como eu peguei no teu corpo para te vestir, como peguei no teu caixão, como te vi tapar com ... terra.
Deus sabe o quanto me custou, o quanto me ... custará de futuro.
Mas ... não te chorei, porque há já muito tempo que eu te ... ... "encontrei".
Em memória da minha MÃE. 10/06/1933 - 03/10/2010
5 comentários:
Urbano,
Me emocionei demais com o seu texto. Lindo, sincero e profundo.
Faz mesmo tão pouco tempo, muito pouco... sinto muito. Mas, festejemos não é mesmo? Assim como os africanos o fazem.
Um forte abraço a você!
Urbano, estou a te ler na madrugada, acabo de escrever um trecho de meu livro que me fez chorar copiosamente e agora, chego aqui ao teu canto e pus-me a chorar novamente. Que linda, emocionante homenagem à tua Mãe.
Que bom que a tenhas encontrado!
Te deixo um abraço apertado e um beijo de afeição.
Urbano, meu amigo!
Não sei nem o que dizer.
Linda sua homenagem.
Bjs.
Urbano, amigo, amado!
Difícil dizer qualquer coisa depois dessa partilha tão bela. Lágrimas escorrem pelo rosto, tamanha emoção a cada linha lida, saudades de minha PÃE. Me disseram à época de sua partida que saudades dela teria todos os dias...pois é o amor que fica dentro de nós! Foi AMOR que li aqui...e onde ela está, tenha certeza do orgulho que sente desse filho...sentado sempre dentro do seu coração!
Beijuuss n.c.
Rê
www.toforatodentro.blogspot.com
Urbano, amigo querido
Não comentarei nada... perdoe-me!
Não consigo...
Não consigo...
As lágrimas... as lagrimas não me deixam...
(escrevo depois, por e-mail)
Abraços!
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